A tecnologia atual possibilita que as funções tradicionais da moeda – meio de troca, reserva de valor e unidade de conta – não precisem mais ser estritamente separadas para serem eficazes. Essa evolução tem o potencial de revolucionar todo o sistema financeiro global. Explico.
À medida que temos as moedas representadas em Blockchains, ou seja, tokenizadas, o uso de determinado token representativo dessa moeda que incorra em juros para o dia a dia é uma alternativa que aparece e muda muito da estrutura e alocação de recursos.
Para ilustrar: consideremos um exemplo inovador e já estabelecido no mundo das criptomoedas. A Lido Finance, atualmente a maior plataforma de Staking de Ethereum, emite um token chamado stETH para cada depositante que coloca ETH em Staking através de sua plataforma. Esse token, stETH, pode ser usado livremente na plataforma Ethereum. Traçando um paralelo com o mercado financeiro tradicional, seria como se você investisse em um fundo e, em troca, recebesse quotas (que chamaremos de fdoBRL). Essas quotas poderiam ser negociadas livremente no mercado, sendo usadas até mesmo para pagar suas compras no supermercado ou adquirir um carro. Esse novo token (fdoBRL) seria uma nova moeda? Qual o risco sistêmico e de crédito que ele carregaria?
Continuando com o stETH, ele é um token aceito em praticamente todas as plataformas de DeFi tal qual o ETH, a diferença é que pelo mecanismo da Lido, esse token stETH tem uma rentabilidade atrelada a ele que vem da função que o Staking de ETH provê, ou seja, garantir a rede. Aqui, o risco do Staking pode ser entendido como o próprio risco da rede, já que se tivermos problema com a Blockchain da Ethereum, os ETH em Staking estarão no topo da fila para responder por eles.
Uma função que o stETH ainda não cumpre (destaque para o “ainda”) é o pagamento das taxas de utilização da Blockchain do Ethereum. No entanto, com a abstração de contas, essa funcionalidade é apenas uma questão de tempo. Nesse contexto, é provável que em breve a grande maioria dos ETH esteja depositada em Staking em plataformas como a Lido. Assim, a “moeda” de transação na rede Ethereum poderá ser tokens similares ao stETH, em vez do próprio ETH. Voltando ao mercado financeiro tradicional, imagine agora um fundo administrado pelo Tesouro Nacional do Brasil que tenha uma carteira composta única e exclusivamente por seus títulos e que você consiga depositar reais (BRL) e receba em troca um token representativo da cota (TesBRL) que possa interagir livremente em uma rede de Blockchain disponibilizada e regulada pelo Banco Central do Brasil (Drex, já ouviu falar?).
Você poderia pagar um café, fazer compras no supermercado ou comprar um imóvel com o TesBRL, que seria amplamente aceito.
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Nesse cenário, tudo seria trocado por TesBRL e não mais BRL, nossa moeda. Em termos econômicos, a TesBRL seria um passivo do Tesouro Nacional e não do BCB. E é a partir daqui que as dúvidas e perguntas se amontoam.
Estaria o Tesouro Nacional emitindo diretamente moeda? Mas isso não é função do BCB? Como separar essas duas entidades? Isso ainda seria necessário, ou a tecnologia tornou essa divisão obsoleta? Como ficam as políticas monetária e fiscal? Tudo junto e misturado?
Outro aspecto dessa discussão está relacionado com a enorme receita em que todos os BCs incorrem por conta de terem o monopólio da emissão de moeda. Isso é conhecido como senhoriagem no mundo econômico. Em termos simples, é a diferença entre o custo de emitir R$ 50,00 (irrisório), em comparação ao valor de face do que foi emitido.
Seria o Tesouro, em algum momento, capaz de emitir TesBRL sem juros e se apropriar de toda a senhoriagem referente a isso? Tal qual o BCB o faz com o BRL?
Perguntas para os economistas responderem do ponto de vista teórico – atualmente – e muito provavelmente, na prática, nos próximos anos.
Veremos adiante que, tecnicamente, uma CBDC de varejo emitida por um Banco Central pode ter juros associados. No entanto, essa não é a direção adotada por nenhum dos projetos de Bancos Centrais que conheço. A principal preocupação é a potencial disrupção do sistema financeiro atual, que se baseia em moeda fracionária e nas funções dos bancos. Um acesso digital direto da população ao Banco Central já é um tópico amplamente debatido. Mas, se o Banco Central começasse a pagar juros sobre esse acesso, surgiria a questão: por que precisaríamos de bancos? O desafio é que as funções atualmente desempenhadas pelos bancos (como gestão de contas e empréstimos) teriam que ser assumidas pelos Bancos Centrais, algo que poucos veem como viável no momento.
Mas o ponto que levanto aqui é outro. Não é o caso de uma CBDC de varejo que pague juros. É a tokenização de um título do Tesouro que servirá como meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor, ou seja, moeda, e isso é uma possibilidade do ponto de vista técnico, porém com enormes implicações.